Criatura Nocturna


Aproxima-se fugazmente a escuridão
E o medo da impotência me agonia.
Temo qualquer reflexo,
Temo qualquer luz natural,
Arrepia-me até a minha própria sombra.
De toda a certeza que possa ter,
Esta é a única de que não duvido,
Amanhã apenas me lembrarei…
Do esquecimento.
A cada segundo me entrego,
E quanto mais luto,
Mais se apodera de mim.
É algo forte e possessivo,
Ao qual não resisto…
Tenho de me deslumbrar com a sua forma
E render-me a sua soberania.
Avanço em ténues passos mortos,
Empurro a porta com um gesto extenuado,
Parando apenas com a aura da noite.
Quando a olho…
Preenche-me um afrontamento gélido.
Aconteceu!
Estou enclausurado no meu físico,
Sem poder controla-lo.
Sinto a mudança,
Um padecimento que adoro.
Esta força… este poder…
O desejo da liberdade,
Que apenas tenho fora da minha competência.
A ultima coisa que me recordo…
(Sou outro eu,
Sou outra existência,
Sei que ao alvorecer nada disto se sucedeu,
No que eu conceituo como minha realidade.
Vagueio pelas ruas,
Longe dos artifícios luminosos,
Escondendo-me na sombra
Que a lua compõe sobre a noite,
Em busca da presa perfeita.
Possuído pela insânia,
Anseio incontrolável,
Pelo fluído que me sacia.
Finalmente encontro,
Mais uma vítima,
Inócua.
Arrepiada pelos fragores nocturnos,
Passeia-se sobre um manto de folhas,
Apressadamente,
Rumo ao seu propósito.
Sei que não tem forças para mim…
Mas tento ser brutal,
Para que a sua resistência,
Não lhe sustente o sofrimento.
Salto em busca da saciedade,
Meros segundos me chegam,
Antes da fatalidade de um golpe,
Para observar a sua face frígida,
Consumida pelo pânico da impotência,
E pela percepção da sua ignorância.
Finalmente tenho a pobre criatura,
Inapta e estática,
Entregue a minha bestialidade.
Olho nos seus olhos
E vejo a estranha satisfação,
De alimentar a causa do seu próprio fim.
É o que compilo,
E guardo no mais profundo consciente…)
… Acordo eu novamente,
Mesmo local,
Mesma condição,
Lá me reconheço…
Em frente do espelho,
Roupa trespassada,
E intelecto desguarnecido…
Apenas preenchido por estranhos olhares,
Os mais belos que poderia contemplar,
Transmitem-me um vazio intenso.
Consome-me a culpa,
De me lembrar apenas de nada.
Sinto a devastação dentro de mim,
Entregue à impotência,
Devaneio na minha subconsciência,
Em busca da resposta,
À pergunta de sempre:
O que sou eu para além de mim próprio?
Todo o dia fujo do pensamento,
Obscurecido pela ignorância do meu ser,
Emboscado numa fronteira sem guarda,
Que sei ser possível exceder,
Mas, impossível de resistir,
Não é deliberada essa acção,
Não é algo da minha vontade,
Apenas um impulso sem aviso,
Que subjuga a minha decência.
Sei que durante mais dois dias,
Tal suplício se repete,
E alheio ao meu fundamento,
Aquele poder me adquire.
Poucas horas me restam,
Para me perder novamente,
Na minha própria mente…
(novamente cá estou eu…
Mais um olhar
Marcado pelo sofrimento,
Mais uma vítima indefesa
Sucumbiu a minha inclemência,
E aqui me defronto,
Esperando o fim da madrugada,
Em frente do mesmo espelho,
Observando tal cenário horrendo.
Aberração da natureza me vejo,
Encaro tal defeito,
Como uma beleza natural,
Transfiguração extrema do vulgar,
Realiza um ser supremo
E de majestoso poder.
Entregue à monotonia
De tal continua observação,
Entro num transe subconsciente…)
… Acordo distante,
Fora do local onde me sepulto,
Encontrado de novo
Em pensamentos e tormentos,
Que dissolvem a minha firmeza,
Susceptível a qualquer estímulo,
Sensível a todo o movimento.
Perdido num labirinto,
Com tantas saídas,
Que enlouqueço
Por não saber pela qual sair,
Cada passo que dou no meu consciente
Me envolve mais numa subconsciência,
Que me afoga
Num abismo de incapacidade.
Sei que apenas sofro mais um dia,
E que depois de tal repetida penitência,
Tenho o merecido descanso.
Durante a próxima jornada de normalidade
Apenas me resigno a presenciar
A lenta morte,
E precipitado renascimento
Do berço da minha loucura,
O orbe lunar.

                           Sanches

Sem comentários:

Enviar um comentário